20 de janeiro de 2011

POR JOSE LUIZ CASTOR

ALEGORIA MARÍTIMA

Era uma vez… um barco chamado “ONTEM”.
Sulcava os mares ia para mais de cem anos. Os seus capitães e respectivas tripulações sucediam-se a um ritmo normal se bem que estas viessem a ser cada vez mais reduzidas, com mais evidência nos últimos anos. Os velhos marinheiros mantinham-se firmes nos seus postos porém, os mais jovens, demandavam outros desafios abandonando a velha embarcação.
Os sinais de degradação do casco eram evidentes. As infiltrações sucediam-se e, apesar do empenho que todos punham na calafetação do madeiro, logo novo furo surgia ali e outro mais além. O bojo já estava imerso.
Os sucessivos capitães, na torre, cumprindo a rotina, perscrutavam o horizonte, com a mão em pala, à espera do novo navio que a Capitania lhes havia prometido. Por duas vezes lhes parecera vê-lo no horizonte, mas logo a silhueta se desvanecera qual miragem.
Os marujos chamavam a atenção dos comandantes para a situação crítica da embarcação com tendência a agravar.
A resposta era invariável: “Aguentai meus bravos que o novo barco está quase a chegar”.
Só que não chegava.
As viagens, sempre à bolina, eram cada mais curtas e pouco ou nada rendiam. Pouco compravam e pouco vendiam o que tornava os rendimentos parcos.
E as infiltrações continuavam. O costado era cada vez mais curto.
Os capitães, na torre, um após outro, esquadrinhavam o horizonte à espera da tal nova embarcação que a Capitania havia prometido.
“Capitão!” diziam os marinheiros “a água já chega a meio do porão!”
“Aguentai rapazes que o novo barco está quase a chegar”, respondia o comandante.
Entretanto, neste espera-desespera, acabou aquele século e outro começou.
Certo dia, estava o capitão a olhar o horizonte, quando, de repente, vem a bordo um emissário da Capitania que lhe diz: “Capitão, vamos dar-vos um outro barco. Não é aquele que tínhamos prometido, mas sim um outro, maior que este, e pronto a navegar”.
Houve festa a bordo naquela tarde-noite. Comida e aguardente não faltaram e depois, já altas horas, todos dormiram um sono reconfortante e esperançoso.
Na manhã seguinte, bem cedo, lá estava o capitão a penetrar o horizonte com o seu olhar, à espera do novo navio.
E esperou. Nesse dia, nos dias seguintes e nos outros que vieram. Esperou.
E o “ONTEM” cada vez mais submerso.
“Capitão!” diziam os marinheiros “a linha d’água está aqui está no convés. ‘Inda por cima os astros anunciam tempo borrascoso”
“Aguentai meus bravos! Só mais um pouco que o novo barco agora é que está mesmo a chegar”, respondeu o comandante.
Naquela noite, alguns já dormiram ao relento pois os seus catres estavam inundados.
O capitão, finalmente com as esperanças a esvaecerem, deitou-se tarde e dormiu um sono profundo mas agitado.
Manhã muito cedo, estava um pescador sentado num pequeno banco de madeira a concertar as redes para no dia seguinte se fazer à faina, quando reparou que, subitamente, atracou em frente ao paredão, aí a meia milha, à entrada do canal, um grande barco do qual saíram, pelo portaló, dois vultos que desceram para um escaler. Remaram na sua direcção, subiram a escadaria de pedra e depois de o saudarem, um deles esclareceu e perguntou:
“Sou emissário da Capitania. Sabes dizer-me onde pára o “ONTEM” que costumava estar fundeado ali à frente?” e apontou vagamente para a entrada do porto.
“No mesmo sítio” respondeu o pescador.
“Como assim, se não o vejo?!” questionou o recém-chegado.
“Não o vedes porque está debaixo de água. Foi-se afundando aos poucos e poucos. Alguns embarcadiços saíram a tempo mas outros fizeram questão de não abandonar o barco e permaneceram a bordo com o capitão. Assisti a tudo daqui deste lugar. O casco, a ponte, os mastros, a bandeira. Tudo. Deu pena. Lentamente se afundou sem deixar…”
“Quer dizer”, interrompeu bruscamente o emissário, “agora que vínhamos entregar aquele barco ao capitão é que ele desapareceu! Bonito serviço”
Fez um gesto vago de despedida, desceu com o companheiro para o bote, remaram rumo ao grande barco que rápido se afastou desaparecendo na ténue neblina que cobria a costa naquele pastoso amanhecer.
Entrava a primeira claridade gris da aurora pelo albói da sua cabina, quando o capitão deu tal salto no velho colchão de folhelho que ia caindo no chão. Levantou-se rapidamente, olhou uns minutos para o exterior e, antes de passar água pela cara, chamou o imediato e ordenou-lhe:
-“Reúne todos os homens no convés. Quero falar com eles. Que venham todos, sem excepção!”
Este saiu de pronto e, na sineta, deu o toque a reunir.
Entretanto o capitão aprontou-se e depois de apertar os botões dourados e baços do seu casacão puído, ajeitou o boné, atestou o cachimbo com tabaco negro, acendeu-o, abriu a porta de um pequeno armário junto à cabeceira, tirou uma caixa metálica aqui e ali com indícios de ferrugem, certificou-se do conteúdo, acomodou-a debaixo dum braço e saiu.
Os tripulantes aguardavam-no na coberta, em silêncio, debaixo de um céu carregado, quase ameaçador. Uns sentados no sobrado, outros encostados a balaustrada, outros, ainda, de pé.
Sem delongas, assim falou:
-“Rapazes. Agradeço-vos todo o tempo e dedicação que destes ao “ONTEM”, a mim próprio e aos que me antecederam”.
Deu uma puxada no cachimbo, reteve o fumo uns instantes, soprou-o com vigor e continuou:
- “Tive um sonho! Sonhei que era pescador e que estava sentado num pequeno banco, além no paredão do cais, a amanhar as redes para…”
Levou de novo o cachimbo à boca mais para pensar que para sorver. E pensou que era melhor continuar, não a falar do sonho, mas sim da sua decisão.
-“Bom. Vou directo ao assunto pelo qual vos chamei. Tenho uma sugestão a fazer-vos e vou com ela avante se me derdes o vosso total apoio. Sem reservas.”
Fez uma pequena pausa e continuou:
-“ O plano é o seguinte: vamos vender o “ONTEM” e com o dinheiro que fizermos da venda mais o que está nesta caixa, compraremos outro barco. Poderá não ser tão bonito. Tem é que ser maior para nele cabermos nós, os nossos quereres e haveres e os nossos sonhos. Havemos de chamar-lhe “AMANHÔ. Que dizeis a isto meus bravos?”
O espanto provocou uns instantes de silêncio só quebrado pelo gajeiro que, surpreendido, perguntou:
-“Capitão! E depois, se vier o tal barco da Capitania, o que fazemos?”
-“Que venha meu rapaz” respondeu o capitão com a firmeza própria de quem já tinha pensado nessa hipótese. “Que venha. E se vier, havemos de chamar-lhe “FUTURO” e então com essa frota e com os que se quiserem juntar a nós, estaremos prontos para enfrentar raios e coriscos, ventos e tormentas e nada nem ninguém nos impedirá de sulcar mares e oceanos para levarmos os produtos da nossa terra a todo o mundo e voltar a produzir riqueza!”
De forma espontânea e uníssona todos atiraram bonés e barretes ao ar, gritaram “Viva! Viva! Viva!” e cantaram o estribilho do velho hino de bordo que fazia muito tempo ninguém se atrevia a cantar:

“Ó meu velho amigo
Quando conto contigo
Nunca me sinto sozinho
Descemos dos nossos montes
Para rasgar horizontes
A proa indica o caminho”

Assim ficaram um bom bocado a celebrar e a cantar.
E não se sabe se foi por contágio, mas até as nuvens se afastaram um pouco para deixar o astro-rei, recém-nascido, dar mais luz a tamanha alegria.
Se assim foi dito, assim foi feito.
Pouco tempo depois, o “AMANHÔ sulcava as águas em todas as direcções. O destino estava encontrado. As rotas eram criteriosamente traçadas e religiosamente cumpridas. Todos sabiam o que queriam e para onde iam.
Restava apenas aguardar, sem pressas, pela chegada do “FUTURO”.

José Luís Castor - JAN/11

PARABÉNS MEU BOM AMIGO
JOSÉ LUIS CASTOR



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